segunda-feira, 1 de junho de 2015

Nosferatu tropical na geleia geral brasileira


* Teresina (PI) – 9 de novembro de 1944
+ Rio de Janeiro (RJ) – 10 de novembro de 1972

Filho de um promotor público e de uma professora primária, o piauiense Torquato Neto estudou em Salvador, no mesmo colégio de Gilberto Gil, de quem se aproximou aos 17 anos nas rodas artísticas de Salvador, onde conheceu também os irmãos Caetano Veloso e Maria Bethânia.

Mais tarde, em 1962, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde fez alguns anos de faculdade de jornalismo, sem se formar.

Apesar disso, exerceu a profissão de jornalista em diversos periódicos, como o Correio da Manhã (no suplemento Plug), O Sol (suplemento do Jornal dos Sports) e Última Hora, onde nos anos de 1971 e 72 escreveu sua badalada coluna Geleia Geral, em que defendia as manifestações artísticas de vanguarda na música, artes plásticas, cinema, poesia etc.

Fundou também jornais alternativos, o Presença e o Navilouca, que só teve um número, mas fez história.


Em 1968, com o AI-5 e o exílio dos amigos e parceiros Gil e Caetano (além de outros emigrados), viajou pela Europa e Estados Unidos com a mulher Ana Maria, morando algum tempo em Londres.

De volta ao Brasil, no início dos anos 70, ligou-se à poesia marginal e aos ícones do cinema marginal, Julio Bressane, Rogério Sganzerla e Ivan Cardoso.

Também era amigo dos poetas concretistas, Décio Pignatari, os irmãos Augusto e Haroldo de Campos, e do artista plástico Hélio Oiticica.

Seu suicídio, um dia depois de seu 28º aniversário, provocou espanto. Torquato voltou de uma festa com a mulher — que foi dormir —, trancou-se no banheiro e ligou o gás, sendo encontrado morto no dia seguinte pela empregada.

Deixou um bilhete de despedida que dizia: “Tenho saudade, como os cariocas, do dia em que sentia e achava que era dia de cego. De modo que fico sossegado por aqui mesmo, enquanto durar. Pra mim, chega! Não sacudam demais o Thiago, que ele pode acordar”.

Thiago era o filho de três anos de idade.


Artigos da coluna Geleia Geral e poesias inéditas foram reunidos no livro “Os Últimos Dias de Paupéria”, organizado por Waly Salomão e a viúva Ana Maria em 1973.

Além disso, o cineasta Ivan Cardoso produziu o documentário Torquato Neto, o Anjo Torto da Tropicália.

Uma das últimas coisas escritas por Torquato Neto, “Pra mim, chega” é também o nome de polêmica biografia do escritor, realizada pelo curitibano Toninho Vaz, que em 2002 estreou no formato escrevendo “O Bandido que Sabia Latim”, uma biografia de Paulo Leminski.

Em sua nova recontagem da vida de Torquato, Toninho Vaz tocou em assuntos delicados, tendo uma personagem principal complexa, profunda e de personalidade pouco conhecida em sua totalidade.


O poeta é geralmente citado como tímido, reservado, introspectivo, melancólico.

A biografia revela uma personalidade diferente: abrangente, expansiva.

Melancólica, sim. Mas também radical, anarquista, incansável, cheia de excessos e paixão pela vida.

Pessoa tão grande que é, um levantamento da história da vida de Torquato não poderia acontecer sem percalços.

Um detalhe surgido na apuração de sua biografia mostrou-se delicado, mas revelador.


Nana Caymmi, em entrevista, lembrando uma das primeiras tentativas de suicídio do poeta, comentou: “Pra mim, ficou claro que era uma paixão pelo Caetano. Todos ali falavam disso”.

Caetano Veloso, entrevistado pelo autor da biografia, foi categórico.

“Se você me perguntar se nós éramos namorados, amantes ou coisa assim, eu posso garantir: não!”, afirmou.

O autor desconfia que esse tenha sido um dos motivos para a desaprovação pública à biografia por parte da viúva de Torquato, Ana Maria Duarte.

Originalmente divulgado como projeto da editora Record, acabou abortado, até ser encampado, com aura de “maldito”, pela Casa Amarela, que publica a revista Caros Amigos.


Com 73 entrevistas, o livro explica na introdução: Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia se escusaram de falar sobre ele.

Chamado de “ideólogo do movimento tropicalista” por Toninho Vaz, Torquato Neto foi talento arrebatador, sensível, louco, inclassificável nos seus interesses.

Como letrista – sua faceta mais conhecida –, emprestou palavras para melodias de Edu Lobo (“Pra Dizer Adeus”), Gilberto Gil (“Louvação” e “Geleia Geral”), Caetano Veloso (“Nenhuma Dor” e “Mamãe Coragem”), Jards Macalé (“Let’s Play That”), Capinam e Gil (“Soy loco por ti America”) e parceria póstuma com Sérgio Brito, gravada pelos Titãs (“Go Back”), entre dezenas de outras.

Como jornalista, escreveu em periódicos como Correio da Manhã e Última Hora, onde manteve por muitos anos coluna de intensa agitação cultural. Como poeta, teve obra esparsa, rascunhada, apenas organizada postumamente.



Há pouco tempo, a editora Rocco organizou essencial trabalho de compilação de toda a obra escrita de Torquato, nos dois volumes de “Torquatália” (“Do Lado de Dentro” e “Geleia Geral”), com letras, poesias, colunas jornalísticas, roteiros, cartas, anotações, ideias e um diário de certo período em que esteve internado – voluntariamente, diga-se – em um hospital psiquiátrico carioca.

Este período é lembrado em detalhes no livro “Pra Mim Chega”, entre outras histórias de solidão, paixões e inconformismo, inclusive do seu período pós-tropicalista, já cabeludo e interessado em cinema e drogas, com lembranças surpreendentes de relações com Glauber Rocha, Zé Celso, Hélio Oiticica.

Tudo muito natural para o poeta que escreveu que um poeta não se faz com versos: “É o risco, é estar sempre a perigo, sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela.”


Cogito

eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranqüilamente
todas as horas do fim.


O Poeta é a Mãe das Armas

O Poeta é a mãe das armas
& das Artes em geral —
alô, poetas: poesia
no país do carnaval;
alô, malucos: poesia
não tem nada a ver com os versos
dessa estação muito fria.

O Poeta é a mãe das Artes
& das armas em geral:
quem não inventa as maneiras
do corte no carnaval
(alô, malucos), é traidor
da poesia: não vale nada, lodal.

A poesia é o pai da ar-
timanha de sempre: quent
ura no forno quente
do lado de cá, no lar
das coisas malditíssimas;
alô poetas: poesia!
poesia poesia poesia poesia!
O poeta não se cuida ao ponto
de não se cuidar: quem for cortar meu cabelo
já sabe: não está cortando nada
além da MINHA bandeira ////////// =
sem aura nem baúra, sem nada mais pra contar.
Isso: ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. a
r: em primeiríssimo, o lugar.

poetemos pois

torquato neto /8/11/71 & sempre.


Geléia Geral

um poeta desfolha a bandeira e a manhã tropical se inicia
resplandente, cadente, fagueira num calor girassol com alegria
na geléia geral brasileira que o Jornal do Brasil anuncia
ê, bumba-yê-yê-boi ano que vem, mês que foi
ê, bumba-yê-yê-yê é a mesma dança, meu boi

a alegria é a prova dos nove e a tristeza é teu porto seguro
minha terra é onde o sol é mais limpo e Mangueira é onde o samba é mais puro
tumbadora na selva-selvagem, Pindorama, país do futuro
ê, bumba-yê-yê-boi ano que vem, mês que foi
ê, bumba-yê-yê-yê é a mesma dança, meu boi

é a mesma dança na sala, no Canecão, na TV
e quem não dança não fala, assiste a tudo e se cala
não vê no meio da sala as relíquias do Brasil:
doce mulata malvada, um LP de Sinatra, maracujá, mês de abril
santo barroco baiano, superpoder de paisano, formiplac e céu de anil
três destaques da Portela, carne-seca na janela, alguém que chora por mim
um carnaval de verdade, hospitaleira amizade, brutalidade jardim
ê, bumba-yê-yê-boi ano que vem, mês que foi
ê, bumba-yê-yê-yê é a mesma dança, meu boi

plurialva, contente e brejeira miss linda Brasil diz “bom dia”
e outra moça também, Carolina, da janela examina a folia
salve o lindo pendão dos seus olhos e a saúde que o olhar irradia
ê, bumba-yê-yê-boi ano que vem, mês que foi
ê, bumba-yê-yê-yê é a mesma dança, meu boi

um poeta desfolha a bandeira e eu me sinto melhor colorido
pego um jato, viajo, arrebento com o roteiro do sexto sentido
voz do morro, pilão de concreto tropicália, bananas ao vento
ê, bumba-yê-yê-boi ano que vem, mês que foi
ê, bumba-yê-yê-yê é a mesma dança, meu boi


Literato Cantabile

agora não se fala mais
toda palavra guarda uma cilada
e qualquer gesto pode ser o fim
do seu início
agora não se fala nada
e tudo é transparente em cada forma
qualquer palavra é um gesto
e em minha orla
os pássaros de sempre cantam assim,
do precipício:

a guerra acabou
quem perdeu que agradeça
a quem ganhou.
não se fala. não é permitido
mudar de idéia. é proibido.
não se permite nunca mais olhares
tensões de cismas crises e outros tempos
está vetado qualquer movimento
do corpo ou onde quer que alhures.
toda palavra envolve o precipício
e os literatos foram todos para o hospício
e não se sabe nunca mais do mim. agora o nunca.
agora não se fala nada, sim. fim. a guerra
acabou
e quem perdeu agradeça a quem ganhou.


Pacato Cidadão

era um pacato cidadão de roupa clara
seu terno, sua gravata lhe caíam bem
seu nome, que eu me lembre, era ezequias
casado, vacinado e sem ninguém.
brasileiro e eleitor, seu ezequias
reservista de terceira e com família
três filhos, prestações e alguns livros
(enciclopédias e biografias)
era um pacato cidadão de roupa clara
era um homem de bem que eu conhecia
cumpria seus deveres, trabalhava
chegava cedo em casa de madrugada
lutando pelo pão de cada dia.
era um pacato cidadão de roupa clara
e todo dia passava e me dizia
que o mundo estava andando muito mal
eu perguntava por que, eu perguntava
seu ezequias nunca me explicava
apenas repetia
lá dentro do seu puro tropical
este mundo vai seguindo muito mal
este mundo, meu filho, vai seguindo muito mal.
ah, seu ezequias!
que pena, que desastre, que tragédia
que coisa aconteceu naquele dia
seu ezequias. ah, seu ezequias
saiu do emprego e foi tomar cachaça
e apenas de manhã voltou pra casa
batendo na mulher, xingando os filhos
seu ezequias, ah seu ezequias
era um pacato cidadão de roupa clara
era um homem de bem que eu conhecia
e agora é a vergonha da família.


Ai de mim, Copacabana

um dia depois do outro
numa casa abandonada
numa avenida
pelas três da madrugada
num barco sem vela aberta
nesse mar
nem mar sem rumo certo
longe de ti
ou bem perto
é indiferente, meu bem

um dia depois do outro
ao teu lado ou sem ninguém
no mês que vem
neste país que me engana
ai de mim, copacabana
ai de mim: quero
voar no concorde
tomar o vento de assalto
numa viagem num salto
(você olha nos meus olhos
e não vê nada -
é assim mesmo
que eu quero ser olhado).

um dia depois do outro
talvez no ano passado
é indiferente
minha vida tua vida
meu sonho desesperado
nossos filhos nosso fusca
nossa butique na augusta
o ford galaxie, o medo
de não ter um ford galaxie
o táxi, o bonde a rua
meu amor, é indiferente

minha mãe, teu pai a lua
nesse país que me engana
ai de mim, copacabana
ai de mim, copacabana
ai de mim, copacabana
ai de mim.


Pílulas

Pílulas do tipo deixa-o-pau-rolar. Na mesma base: deixa.

Primeiro passo é tomar conta do espaço. Tem espaço a beça e só você sabe o que o que pode fazer do seu. Antes ocupe. Depois se vire.

Não se esqueça de que você está cercado, olhe em volta e dê um rolê. Cuidado com as imitações.

Imagine o verão em chamas e fique sabendo que é por isso mesmo. A hora do crime precede a hora da vingança, e o espetáculo continua. cada um na sua, silêncio.

Acredite na realidade e procure as brechas que ela sempre deixa. Leia o jornal, não tenha medo de mim, fique sabendo: drenagem, dragas e tratores pelo pântano. Acredite.

Poesia. Acredite na poesia e viva. E viva ela. Morra por ela se você se liga, mas por favor, não traia. O poeta que trai sua poesia é um infeliz completo e morto. Resista, criatura.

Sínteses. Painéis. Afrescos. Reportagens. Sínteses. Poesia. Posições. Planos gerais. "O Close-up é uma questão de amor". Amor.

Eu, pessoalmente, acredito em vampiros. O beijo frio, os dentes quentes, um gosto de mel.

16/11/71 - 3ª-feira


Let’s play that

quando eu nasci
um anjo louco
muito louco
veio ler a
minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião
eis que esse anjo
me disse
apertando a
minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
let’s play that
até o fim

Cacaso ou a poesia como brinquedo



Cacaso nasceu Antônio Carlos Ferreira de Brito em 1944 (Uberaba, MG) e morreu em 27 de dezembro de 1987, no Rio de Janeiro. Aos 12 anos ganhou página inteira de jornal por causa das caricaturas de políticos que enchiam seus cadernos escolares. Mas logo veio a poesia e antes dos 20 já estava colocando letras em sambas de amigos como Elton Medeiros e Maurício Tapajós. 

Em 67 veio o primeiro livro, A Palavra CerzidaDois anos depois formou-se bacharel em Filosofia pela UFRJ, em 1969. Na época já colaborava nos jornais alternativos Opinião e Movimento e participava ativamente dos movimentos estudantis contra o regime militar.

Entre 1970 e 1975 foi professor de Teoria Literária na PUC-RJ. Em 1974 e 1975 integrou os grupos poéticos Frenesi, com Roberto Schwarz, Francisco Alvim, Geraldinho Carneiro e João Carlos Pádua, e Vida de Artista, com Eudoro Augusto, Carlos Saldanha (Zuca Sardan), Chacal e Luiz Olavo Fontes, produzindo suas próprias coleções, antologias e revistas.

Sua produção poética inclui os livros Grupo Escolar (1974), Segunda Classe (1975), Beijo na Boca (1975), Na Corda Bamba (1978), Mar de Mineiro (1982), Beijo na Boca e Outros Poemas (Antologia - 1985) e Lero-Lero (Obras Completas - 2003).

São livros que não só revelaram uma das mais combativas e criativas vozes daqueles anos de ditadura e desbunde, como ajudaram a dar visibilidade e respeitabilidade à poesia marginal.


Sua obra, influenciada por Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Oswald de Andrade, tematizou a política e o amor em tempos de ditadura militar e liberação sexual, com doses generosas de humor e crítica social. Como professor e teórico de Comunicação, conquistou a simpatia e a admiração de centenas de jovens poetas de todo o país.


No campo da música, os amigos/parceiros se multiplicaram na mesma proporção: Edu Lobo, Tom Jobim, Sueli Costa, Cláudio Nucci, Novelli, Nelson Angelo, Joyce, Toninho Horta, Francis Hime, Sivuca, João Donato, etc.


Nas aventuras da vida de artista e nas polêmicas da poesia, os companheiros de viagem se chamavam Leilah Assunção, Pedrinho, Rosa, Paula, Vila Arêas, Davi Arrigucci, Miúcha e Cristina Buarque de Holanda, Ferreira Gullar, Hélio Pellegrino, Afonso Henriques Neto, Ana Luísa, Bita Carneiro, Maurício Maestro e Ana Cristina César, entre outros.

"Aos 43 anos, Cacaso conservava o rosto juvenil, redondo, mantendo ainda os cabelos longos, a barba por fazer e as sandálias de couro. Para uma geração - a de 68 - Cacaso era o poeta, até na sua maneira desleixada de se vestir. (...) Também Cacaso tinha um lado teórico, que lhe servia para explicar aos seus companheiros o que estava fazendo. A poesia marginal, na verdade, foi o grande ‘poema sujo’ de uma geração. Esta poesia rejeitava os dogmas ou uma maneira de se fazer poesia que estava associada aos poetas concretos. Era uma rejeição vital. Afinal, eles não poderiam perder tempo lendo Ezra Pound - o grande mestre da geração concretista. Esta geração desejava falar de poesia e fazer poemas. Isto bastava. E fizeram. Cacaso era uma espécie de tutor deste movimento. Professor de Literatura da PUC, amigo do sociólogo Roberto Schwarz, leitor de autores marxistas, ele dava base teórica para aquela geração. E em vez de Ezra Pound, eles procuram a poesia - límpida e simples - de Manuel Bandeira."

(Wilson Coutinho in O som de um anjo. Jornal do Brasil. Caderno B. 1987.)

"É nas poesias daquela época [anos 70] que Cacaso - misturando procedimentos de Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Oswald de Andrade a uma percepção original - fez um retrato possível dos sentimentos vigentes num país imerso na ditadura. (...) Poesia política de lirismo discreto, sem nenhum pendor mobilizador, sem se pretender canto arrebatador ou denúncia sisuda de mazelas ditatoriais. Foi através do humor, das inversões de sentido à la Oswald de Andrade, que Cacaso obteve seus melhores resultados nessa fase. Nela, a política estava em maior evidência - mas, em nenhum momento deixou de fundar-se na individualidade de Cacaso, na sua nostalgia de situações perdidas e passadas e no seu estranhamento com o presente. Como no curto e direto ‘Lar Doce Lar’."

(Revista Veja in Trapaças da sorte. 1988.)

"A certa altura, Cacaso imaginou que a sua vida de intelectual e artista seria mais livre compondo letras de música popular do que dando aulas na faculdade. Na época chegou a idealizar bastante a liberdade de espírito proporcionada pelo mecanismo de mercado. Penso que ultimamente andava revendo essas convicções. Seja como for, o passo de professor a letrista, acompanhado de planos ambiciosos de leitura literária, histórica e filosófica, assim como de produção crítica, mostra bem a sua disposição de entrar por caminhos arriscados e de vencer em toda linha. Talvez apostasse que uma certa informalidade de menino lhe permitiria ignorar e superar as incompatibilidades que a nossa cultura ergueu entre arte exigente e arte comercial, entre estudos e estrelato, entre conseqüência política e fruição desinibida. (...)"

(Roberto Schwarz in O poeta dos outros. Novos Estudos Cebrap. 1988).













estações

Do corpo de meu amor
exala um cheiro bem forte.

Será a primavera nascendo?



lar doce lar

Minha pátria é minha infância:
Por isso vivo no exílio.



indefinição


pois assim é a poesia:
esta chama tão distante mas tão perto de
estar fria.



história natural

Meu filho agora
ainda não completou três anos.
O rosto dele é bonito e os seus olhos repõem
muita coisa da mãe dele e um pouco
de minha mãe.
Sem alfabeto o sangue relata
as formas de relatar: a carne desdobra a carne
mas penso:
que memória me pensará?
Vejo meu filho respirando e absurdamente
imagino
como será a América Latina no futuro.



o fazendeiro do mar

mar de mineiro é
inho
mar de mineiro é
ão
mar de mineiro é
vinho
mar de mineiro é
vão
mar de mineiro é chão
mar de mineiro é pinho
mar de mineiro é
pão
mar de mineiro é
ninho
mar de mineiro é não
mar de mineiro é
bão
mar de mineiro é garoa
mar de mineiro é
baião
mar de mineiro é lagoa
mar de mineiro é
balão
mar de mineiro é são
mar de mineiro é viagem
mar de mineiro é
arte
mar de mineiro é margem

(...)

mar de mineiro é
arroio
mar de mineiro é
zen
mar de mineiro é
aboio
mar de mineiro é nem
mar de mineiro é
em
mar de mineiro é
aquário
mar de mineiro é
silvério
mar de mineiro é
vário
mar de mineiro é
sério
mar de mineiro é minério
mar de mineiro é
gerais
mar de mineiro é
campinas
mar de mineiro é
goiás
mar de mineiro é colinas
mar de mineiro é
minas


e com vocês a modernidade


meu verso é profundamente romântico.
choram cavaquinhos luares se derramam e vai
por aí a longa sombra de rumores e ciganos.
ai que saudade que tenho de meus negros verdes
anos!


happy end

o meu amor e eu
nascemos um para o outro
agora só falta quem nos apresente


estilos trocados

meu futuro amor passeia — literalmente — nos
píncaros daquela nuvem.
mas na hora de levar o tombo advinha quem cai.



sonata

ecos daquele amor ressonam profundamente
e cada vez mais leves absurdas pancadas deu no
que deu minha memória relata

escorrego para dentro dos decotes dela


ah!

ah se pelo menos o pensamento não sangrasse!
ah se pelo menos o coração não tivesse
[memória!
como seria menos linda e mais suave
minha história!



alquimia sensual

tirante meus olhos e mãos
quero me transformar em seu corpo
com toda nudez experiente
do passado e do presente
e naquela noite
entre suspiros
terei aguardado a hora incrível
de tirar o sutiã



busto renascentista

quem vê minha namorada vestida
nem de longe imagina o corpo que ela tem
sua barriga é a praça onde guerreiros
[se reconciliam
delicadamente seus seios narram
[façanhas inenarráveis
em versos como estes e quem
diria ser possuidora de tão belas omoplatas?

feliz de mim que freqüento amiúde e quando posso
a buceta dela



capa e espada

meu amor sentindo-se incapaz de ser amada
levanta herméticos escudos e duendes a qualquer
dádiva
que de mim — ai de mim! — possa brotar
nada mais ameaçador que os olhos do amor


táxi

o poeta passa de táxi em qualquer canto e lá vê
o amante da empregada doméstica sussurrar
em seu pescoço qualquer podridão deste universo.
como será o amor das pessoas rudes?
o poeta não se conforma de não conhecer

todas as formas da delicadeza.


imagens I

para evitar malentendidos
digamos desde já que nos amamos.



estilos de época

havia
os irmãos Concretos
H. e A. consanguíneos
e por afinidade D.P.,
um trio bem informado:
dado é a palavra dado

e foi assim que a poesia
deu lugar à tautologia
(e ao elogio à coisa dada)
em sutil lance de dados:
se o triângulo é concreto
já sabemos: tem 3 lados.


poética

alguma palavra,
este cavalo que me vestia como um cetro,
algum vômito tardio modela o verso.
certa forma se conhece nas infinitas,
a fauna guerreira, a lua fria
encrustada na fria atenção.
onde era nuvem
sabemos a geometria da alma, a vontade
consumida em pó e devaneio.
e recuamos sempre, petrificados,
com a metafísica
nos dentes: o feto
fixado
entre a náusea e o lençol.
meu poema me contempla horrorizado.


surdina

primeiro o Tenório Jr.
que sumiu na Argentina
depois quando perigava
onze e meia da matina
veio a notícia fatal:
faleceu Ellis Regina!
um arrepio gelado
um frio de cocaína!
a morte espreita calada
na dobra de uma esquina
rodando a sua matraca
tocando a sua buzina
Isso tudo sem falar
na morte do velho Vina!
e agora é Clara Nunes
que morre ainda menina!
é demais! Que sina!
a melhor prata da casa
o ouro melhor da mina
que Deus proteja de perto
a minha mãe Clementina!
lá vai a morte afinando
o coro que desafina...
se desse tempo eu falava
do salto da Ana Cristina.



Eu te amo

seu amor me furta
seu horror me encanta
minha vida é curta
minha fome é tanta
minha carne é fraca
minha paz é louca
minha dor é farta
minha parte é pouca
minha cova é rasa
meu lamento é mudo
seu amor me arrasa
sua ausência é tudo
minha sorte é cega
sua luz me esconde
minha morte é certa
meu lugar é onde
seu carinho é pena
seu amor é mando
minha falta é plena
minha vez é quando

No céu, com diamantes


Trajando sandálias chinesas, cabelo punk, carregando um diploma de mestrado em arte e um livro editado em Londres, Ana Cristina César chegou ao Brasil em plena década de 70, para marcar definitivamente a história da poesia contemporânea nacional. Ana C., como gostava de assinar, distinguiu-se por sua voz despudoradamente feminina e por ter criado uma obra poética nova, resultante de uma mistura de ficção e confissão.

Nascida no dia 2 de junho de 1952, no Rio de Janeiro, criou-se entre Niterói, Copacabana e os jardins do colégio Bennet. Aos sete anos, publicou seus primeiros poemas no jornal Tribuna da Imprensa. Em 1968, passou um ano em Londres e realizou muitas viagens pelo mundo. Voltou para o Brasil transformada e formou-se em Literatura na PUC-RJ, onde mais tarde deu aulas.

Para sobreviver, fez muitas traduções, escreveu para revistas e jornais alternativos – que seriam o berço dos melhores jornalistas e ilustradores de hoje – e lançou seus livros por editoras independentes. "O Beijo", um desses jornais alternativos, foi reconhecido em sua época como um dos mais interessantes veículos da contracultura carioca, da década de 70.

Em 1978, após finalizar um Mestrado de Comunicação na UERJ, foi mais vez para Londres, onde obteve, com distinção, o título de Master of Arts em teoria e prática literária. Ao retornar ao Brasil, fixou residência no Baixo Gávea e começou a trabalhar com jornalismo e televisão. Em novembro de 1982, pela primeira vez, ela publicou seus versos por uma grande editora: "A Teus Pés", editado pela Brasiliense.

O livro reunia seus escritos que já eram conhecidos através de jornais (como a Folha de São Paulo), revistas e livros de tiragem limitada. O lançamento de "A Teus Pés" foi saudado pela crítica, que começou a ver Ana C. como um dos mais promissores talentos poéticos da poesia marginal carioca da geração de 70, o que as pessoas que a conheciam já sabiam.


No texto seguinte, a poeta nos ensina sobre si mesma e sobre a sua arte: "Era noite e uma luva de angústia me afagava o pescoço. Composições escolares rodopiavam, todas as que eu lera e escrevera e ainda uma multidão herdada de mamãe. Era noite e uma luva de angústia... Era inverno e a mulher sozinha... Escureciam as esquinas e o vento uivando... Saí com júbilo escolar nas pernas, frases bem compostas de pornografia pura, meninas de saiote que zumbiam nas escadas íngremes. Galguei a ladeira com caretas, antecipando o frio e os sons eróticos povoando a sala esfumaçada".

Com todo esse sentimento, a poeta criou "Samba-canção", uma de suas mais belas poesias sobre o ser feminino contemporâneo: "Tantos poemas que perdi. Tantos que ouvi, de graça, pelo telefone - taí, eu fiz tudo pra você gostar, fui mulher vulgar, meia-bruxa, meia-fera, risinho modernista arranhando na garganta, malandra, bicha, bem viada, vândala, talvez maquiavélica, e um dia emburrei-me, vali-me de mesuras (era comércio, avara, embora um pouco burra, porque inteligente me punha logo rubra, ou ao contrário, cara pálida que desconhece o próprio cor-de-rosa, e tantas fiz, talvez querendo a glória, a outra cena à luz de spots, talvez apenas teu carinho, mas tantas, tantas fiz..."

Ana Cristina César demitiu o verso e a própria vida numa tarde de sábado, dia 29 de outubro de 1983. Tinha 31 anos quando se suicidou, se jogando pela janela de seu apartamento. Quarenta minutos antes de sua morte, Ana C. conversou pelo telefone com o poeta Armando Freitas Filho. O poeta, logo depois que recebeu a notícia da morte, soube que havia uma carta destinada a ele. Nela, havia brincadeiras, digressões sobre a poesia e a vida, histórias de namoros falidos ou mal começados, comentários ácidos sobre tudo e todos em uma só trama, que fez com que Armando Freitas Filho a definisse da seguinte maneira: "Ana Cristina foi uma ventania em câmara lenta que passou na minha vida".


Ana C. foi a própria encarnação da modernidade. Soube ser feminina sem ser feminista, sem estar ideologicamente presa a nada. Talvez por isso, tenha morrido cedo, fazendo sobre nossa terra uma passagem permanente. O lugar que ocupa como poeta é na linha do horizonte - virtual e veloz. Seu verso, que pertenceu à vertente cultivada da geração que apareceu em 70, é, hoje, a pedra fundamental de toda a poesia que se quer nova.

Depois de sua morte, Heloísa Buarque de Holanda e Armando Freitas Filho se encarregaram de editar a correspondência da poetisa. Nessa obra, mais do que um mero relato das experiências vividas pela artista, é possível reconhecermos o seu desejo de superar o circunstancial por meio do artifício literário. Intitulado "Correspondência Incompleta", é composto pelas cartas da jovem poeta carioca endereçadas às suas professoras Clara Alvim, Heloisa Buarque de Hollanda, Cecilia Londres e à amiga Ana Candida Perez, entre 1976 e 1980.

A maneira apaixonada como relevava a sua vida às amigas, rouba a cena nestas correspondências. É uma obra maravilhosa, onde é possível perceber a personalidade de uma das mais sensíveis escritoras da literatura contemporânea. Ana C. transformou a mulher em texto, o corpo feminino em prosa e a vida em arte. Em suas palavras: "A ponto de partir, já sei que nossos olhos sorriam para sempre na distância. Parece pouco? Chão de sal grosso, e ouro que se racha. A ponto de partir, já sei que nossos olhos sorriem na distância. Lentes escuríssimas sob os pilotis. "


Após sua morte, a reunião de seus escritos inéditos deu origem a três obras, organizadas por Armando Freitas Filho: “Inéditos e dispersos” (prosa e poesia), de 1985, “Escritos da Inglaterra” (ensaios e textos sobre a tradução e literatura), de 1988, e “Escritos no Rio” (artigos, textos acadêmicos e depoimentos), de 1993.

Mário Prata disse que “as pessoas não ficavam amigas de Ana. As pessoas simplesmente se apaixonavam por ela”. E Armando Freitas Filho: “Ana Cristina encarava a modernidade. Talvez por isso tenha morrido cedo - pura passagem permanente - muitas asas e um desdém pelo que poderia ser raiz. O lugar que ocupa é linha do horizonte - virtual e veloz.

Seu verso, que pertence à vertente cultivada da geração que apareceu em 70, é, hoje, pedra de toque para toda poesia que se quer nova; com seus motivos e matizes estilizados que se deixam acompanhar, ao fundo, por uma brusca e inusitada melodia que parece ter sido feita pela mistura de cristais, heavy metal e tafetá.

A obra é breve, um cinema essencial, e depressa. Morria de sede no meio de tanta seda. Nunca nos esquecemos de sua paixão acesa e seca. O que mais queima: a pedra de gelo ou o ferro em brasa? Vulcão de neve. Ela não foi - ela fica - como uma fera."




Protuberância

Este sorriso que muitos chamam de boca
É antes um chafariz, uma coisa louca
Sou amativa antes de tudo
Embora o mundo me condene
Devo falar em nariz (as pontas rimam por dentro)
Se nos determos amanhã
Pelo menos não haverá necessidades frugais nos espreitando
Quem me emprestar seu peito na madrugada
E me consolar, talvez tal vez me ensine um assobio
Não sei se me querem, escondo-me sem impasses
E repitamos a amadora sou
Armadora decerto atrás das portas
Não abro para ninguém, e se a pena é lépida, nada me detém
É sem dúvida inútil o chuvisco de meus olhos
O círculo se abre em circunferências concêntricas que se
Fecham sobre si mesmas
No ano 2001 terei (2001-1952=) 49 anos e serei uma rainha
Rainha de quem, quê, não importa
E se eu morrer antes disso
Não verei a lua mais de perto
Talvez me irrite pisar no impisável
E a morte deve ser muito mais gostosa
Recheada com marchemélou
Uma lâmpada queimada me contempla
Eu dentro do templo chuto o tempo
Um palavra me delineia
VORAZ
E em breve a sombra se dilui,
Se perde o anjo.

Flores do Mais

devagar escreva
uma primeira letra
escrava
nas imediações construídas
pelos furacões,
devagar meça
a primeira pássara
bisonha que
riscar
o pano de boca
aberto
sobre os vendavais,
devagar imponha
o pulso
que melhor
souber sangrar
sobre a faca
das marés;
devagar imprima
o primeiro
olhar
sobre o galope molhado
dos animais, devagar
peça mais
e mais e
mais

Casablanca

Te acalma, minha loucura!
Veste galochas nos teus cílios tontos e habitados!
Este som de serra de afiar facas
não chegará nem perto do teu canteiro de taquicardias...

Estas molas a gemer no quarto ao lado
Roberto Carlos a gemer nas curvas da Bahia
O cheiro inebriante dos cabelos na fila em frente no cinema...

As chaminés espumam pros meus olhos
As hélices do adeus despertam pros meus olhos
Os tamancos e os sinos me acordam depressa na
madrugada feita de binóculos de gávea
e chuveirinhos de bidê que escuto rígida nos lençóis de pano

Que deslize

Onde seus olhos estão
as lupas desistem.
O túnel corre, interminável
pouco negro sem quebra
de estações.
Os passageiros nada adivinham.
Deixam correr
Não ficam negros
Deslizam na borracha
carinho discreto
pelo cansaço
que apenas se recosta
contra a transparente
escuridão.

Fagulhas

Abri curiosa
o céu.
Assim, afastando de leve as cortinas.
Eu queria rir, chorar,
ou pelo menos sorrir
com a mesma leveza com que
os ares me beijavam.
Eu queria entrar,
coração ante coração,
inteiriça,
ou pelo menos mover-me um pouco,
com aquela parcimônia que caracterizava
as agitações me chamando.
Eu queria até mesmo
sabe ver,
e num movimento redondo
como as ondas
que me circundavam, invisíveis,
abraçar com as retinas
cada pedacinho de matéria viva.
Eu queria
(só)
perceber o invislumbrável
no levíssimo que sobrevoava.
Eu queria
apanhar uma braçada
do infinito em luz que a mim se misturava.
Eu queria
captar o impercebido
nos momentos mínimos do espaço
nu e cheio.
Eu queria
ao menos manter descerradas as cortinas
na impossibilidade de tangê-las.
Eu não sabia
que virar pelo avesso
era uma experiência mortal.




Tenho arrumado os livros.
Tiro de uma prateleira sem ordem e coloco em outra
com ordem. Ficam espaços vazios.
Hora em hora.
Não tenho te dito nada.
Ligo para os outros.
O que eu poderia dizer é perigoso: certeza (assim como
eu disse: daqui dez anos estarei de volta) de que nos
reencontramos, cedo ou tarde.
Mas não sei mais quando

Cedo ou tarde reencontro - o ponto
de partida.



Tu queres sono: despe-te dos ruídos, e
dos restos do dia, tira da tua boca
o punhal e o trânsito, sombras de
teus gritos, e roupas, choros, cordas e
também as faces que assomam sobre a
tua sonora forma de dar, e os outros corpos
que se deitam e se pisam, e as moscas
que sobrevoam o cadáver do teu pai, e a dor
(não ouças)
que se prepara para carpir tua vigília, e os
cantos que
esqueceram teus braços e tantos movimentos
que perdem teus silêncios, o os ventos altos
que não dormem, que te olham da janela
e em tua porta penetram como loucos
pois nada te abandona nem tu ao sono.


Soneto

Pergunto aqui se sou louca
Quem quer saberá dizer
Pergunto mais, se sou sã
E ainda mais, se sou eu

Que uso o viés pra amar
E finjo fingir que finjo
Adorar o fingimento
Fingindo que sou fingida

Pergunto aqui meus senhores
quem é a loura donzela
que se chama Ana Cristina

E que se diz ser alguém
É um fenômeno mor
Ou é um lapso sutil?



olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas



O homem público n.º 1


Tarde aprendi
bom mesmo
é dar a alma como lavada.
Não há razão
para conservar
este fiapo de noite velha.
Que significa isso?
Há uma fita
que vai sendo cortada
deixando uma sombra
no papel.
Discursos detonam.
Não sou eu que estou ali
de roupa escura
sorrindo ou fingindo
ouvir.
No entanto
também escrevi coisas assim,
para pessoas que nem sei mais
quem são,
de uma doçura
venenosa
de tão funda.

Alquimista dos signos, assasigno das palavras




















Márcio Almeida nasceu em Oliveira (MG), em 1947, e foi muito influenciado por Sebastião Nunes, de quem é compadre e parceiro em vários projetos. Formado em Letras pela UFMG, é professor universitário, publicitário, jornalista e escritor, com vários prêmios na bagagem, entre eles o 1º Prêmio de Poesia Emílio Moura (1977) e o 2º lugar no Concurso de Contos do Paraná (1972).

Ele iniciou sua carreira poética nos anos 60, com o ex-grupo de vanguarda Vix (o poeta Hugo Pontes era um dos membros), por onde publicou o “1º Caderno Mostra”, “Ocopoema”, “ReVIXta” e a revista “Frente”, com diversos autores.

Nos anos 70, publicou “Lavrário” (1971), “Antologia Poética” (1977, em parceria com Pascoal Motta, Geraldo Reis, Antonio Barreto e Ronald Clavel), “As Canções Adiadas dos Nossos Soluços Medrosos” (1979), “Previsão de Haveres na Terra do Puka” (1978) e “O Não Nosso de Cada Dia”.

Nos anos 80, deixou a poesia escrita de lado para dedicar-se à poesia visual, tendo publicado “Não Haverá Míssil de 7.º Dia” (1983), “Orwelhas Negras” (1985, que teve uma edição especial pela Editora Boulder, dos Estados Unidos, em 1986), “Falúdica” (1987) e “Vler” (1988).

A partir de 1986, começou a apresentar-se em performances poéticas com o Grupo Tropa Mineira pelo circuito de bares de Belo Horizonte e em cidades do interior mineiro.

Membro da Comissão Mineira do Folclore, Márcio Almeida foi responsável pela inclusão na Enciclopédia Barsa, em 2002, de um verbete sobre o personagem “Cai n’água”, considerado a maior tradição do carnaval de Oliveira, sua terra natal.

Segundo matéria publicada na Revista da Comissão Mineira de Folclore n.º 21, o poeta fez um registro histórico do Cai-n’água desde sua origem na Antigüidade Clássica. “Àquela época, a máscara era usada nos festins dionisíacos, e chegou, com a história, ao Brasil, através de dois importantes eventos barrocos – o Triunfo Eucarístico, em 1733, realizado em Ouro Preto, e o Áureo Trono Episcopal, em Mariana, em 1748”, explicou Márcio Almeida.

“O Cai-n’água tem origem religiosa: sua indumentária lembra o encapuzado das procissões da Semana Santa em Sevilha, na Espanha, que perdura desde a Idade Média naquele país. O escritor Graciliano Ramos faz referência ao Papangu em sua obra e tudo indica que é o nosso Cai-n’água. Pois ele, agora, é cidadão do mundo em pleno anonimato de sua entidade”, brincou.




ASSASSIGNO

Nas fileiras das estantes
s-obram palavras e traças:
não reverse o veio dantes
e por melhor que o faça.

A linguagem só se inventa
E joga com dado lance:
Não poete de requenta,
Por mais ilusão alcance.

Não amArele rolls-joyce,
Não faça mallarmelada,
Não eufemíssil à coice,
E não cante por cantada.

Não reboque barrocávila,
Não confisque mais de cláudio
Nunca re(x)clame dah! Vida,
Não se corrompa por gáudio.

Não panfleteie ideologia,
Não holografe em atari,
Não loversonhe as marias,
Não palavre: signatari.

Não venha com requevedos,
Não lenhe em tom de gregório,
Não ordenhe ofício do aedo,
Nem o público-notório.

Não saque a 45
Não inverse poema-processo
Não use mel, goma ou, em vinco,
Divã-guarde retrocesso.

Não provencie a goliardo
Não reenlouqueça os ar(t)naudt,
Não faça da fala fardo,
Não insume com o cocô.

Não vá, não fique na onda,
Não caia naquela ou de porre,
Não refaça plagioconda,
Não suje o marfim da torre.

Não publique o poetego,
Não bajule a panelinha,
Não se desdenhe de cego,
Não fale nas entrelinhas.

Não Tradúzia o neo dos campos
Não antifugue bachstianunes
Não entre – linguagem é grampo,
Não julgue a poesia impune.

Não oswaldolatre perjuras,
Não vá de bandeira-dois,
Não relate as escrituras,
Não esqueça do nome aos bois.

Não leréie pounderação,
Não geléie de cummings-kaze
Não restréie rimar em Ão,
Não coquetéie a nova fase.

Não se distraia, lendo vico,
Não se traia, sendo ovídio ou
Subtraie obra do pinico,
Não vaie nunca versuicídio.

Não bissexte pelo reto,
Não se iluda sem ver gílio,
Não discursobre o concreto,
Não purguevara ou idílio.

Não almaminhe vaz camões,
Não redobregue huidobro,
Não prosopopeie os sermões,
Não estruturalize o adobo.

Não transuje o blanco-paz,
Não urbanize joão cabral,
Seja per-verso: abra o gás.
E cheire as flores do mal.

Não drummondeie substantivo,
Não se cordeire em escola,
Não academize ledivo,
Não stanislauda o que assola.

Não sugarana de rosa,
Não chanteie a éluard,
Não diz que a rosa é a rosa,
Não liberte que será tarde.

Não dê uma de alcagoethe
Resousândrade o discurso,
Não best-seller ou verbete,
Não desmaiakovski os russos.

Não envie desc-arte postal,
Não deixe de re-leminski,
Não derrame ode em sarau,
Decubo-versal, kandisky.

Não pseudografe pessoa,
Não freudelire breton,
Não escreva, a sério ou à toa,
Não unte a língua de batoM.

Não faça kilkerrelease,
Não passe por elliotário,
Não (se) banalize em silk.
Não suplemente literário.

Não passe replei, desista,
Não há vítima ou lição:
Versejar, ora!, não insista,
O melhor poema é o não.


Cai-N’água


Eu sou essa máscara, esse chitão,
e meu rosto, amigo (a), é a cara do povo.
É uma mistura de desespero com inflação,
mãos desempregadas e fome, nada de novo.

Sou o mistério que nunca se explica
por tal dúvida cá dentro e lá fora;
o que fala o indevido, o tapa de pelica,
uma candinha rouca, o que faz hora.

Sou alguma timidez assanhada,
Bruxo de crianças e mágico,
pois o meu avesso é fossa e nada,
pois o meu espelho é josta e trágico.

Meu rosto de povo é muito asceta,
e esse capuz é velho folião,
ele tem o rumo das diretas,
ele quer liberdade, terra e pão.

Sou aquele tanto que cai-n’água
de suor, da chuva e da cachaça,
porque é assim que purga a mágoa
o povo da folia e da desgraça.

Eu sou essa máscara, esse chitão,
folk de Oliveira, crítica dos lodos,
cai-n’água, pato, rua do Cordão,
e, por ser anônimo, me declaro todos.


Canção do exílio

Minha terra tem palmérios
Onde cantam sábios ahs!
Aves que raimundocorreiam
Não borgeiam como em ucbar


Neohfitos & necrófilos

Para os conversores de harpas
Para os imortais espectros
Baudelaire nas pancárpias
E deliraRtauds nos plectros


Feijoada

Jogue pérolas aos porcos
Corte bacon em fatias
Desarolhe orelhas de livros
Descarne o paio taveirós
Use só feijoão cabral
Couvenir sem agrotóxico
Ping ly mao no arroz à gregan
Encha com muita lingüiça
Afogue naqueles óleos verdes
Farinha de pau & cordas
Azeite de dandy e vinagretchen
Botalho de pimendonça
3 almanaques de cebolinha
Sal/sA 1 laranja mecânica
E entre em cana à vontade

Desafinando o coro dos contentes em Braxília


Nicolas Behr (Nikolaus von Behr) nasceu em Cuiabá, Mato Grosso, em 1958. Estudou o primário com padres salesianos, em Diamantino, onde os pais eram fazendeiros. Mudou-se para a capital aos 10 anos e sonhava ser geólogo. Mora em Brasília desde 74.

Em 77 lançou seu primeiro livrinho, Iogurte com Farinha, impresso gloriosamente e mimeografado nas dependências do Colégio Setor Leste, quando da morte de Elvis Presley, exatamente um ano após a morte de Juscelino Kubitschek.

O livrinho se transformou no maior “best seller” da poesia marginal. Tirou mais de 8 mil exemplares, sempre de mão em mão, vendido apenas pelo autor em suas perambulações pelo campus, a rodoviária, bares e entrequadras.

Em 1978, após lançar Grande Circular, Caroço de Goiaba, Bagaço e Chá com Porrada, foi preso pelo DOPS por “ posse de material pornográfico” (na verdade, por suas atividades políticas no movimento estudantil) sendo julgado e absolvido no ano seguinte. O Dr. D’Alambert Jaccoud foi seu advogado. Foi um processo tão absurdo e surrealista, que Nicolas Behr acabou nas Páginas Amarelas da revista Veja para contar sua versão dos fatos.

De 1980 a 1986 foi redator em várias agências de propaganda da cidade. Em 1982 criou, juntamente com Zunga e Lacerda, o MOVE – Movimento Ecológico de Brasília – primeira ONG ambientalista da capital federal. Em 1987 morou em Washington DC, EUA, vindo a trabalhar na FUNATURA – Fundação Pró-Natureza de 1988 a 1990.


De lá pra cá dedica-se à produção e comercialização de mudas, seu antigo “hobby”, sendo pioneiro na produção de mudas de espécies nativas dos cerrados, especializando-se em palmeiras e em frutas e árvores raras. Voltou a publicar seus livros de poesia a partir de 1993, com Porque Construí Braxília.

Sócio-Gerente da Pau-Brasília viveiro.eco.loja. Casado com Alcina Ramalho desde 1986, tem três filhos: Erik (1990) Klaus e Max (gêmeos – 1992). Mora na Península Norte.

Em 2006, ele lançou a coletânea Restos vitais, que contém não apenas os poemas dos cinco primeiros volumes como documentos históricos da maior importância: fac-símiles das capas e folhas de rosto dos livrinhos e, o que é melhor, cópias dos processos movidos contra o poeta, pelo Ministério Público, por porte de material pornográfico, e a sentença do juiz absolvendo-o das acusações.

A arte de Nicolas Behr possui vários aspectos a mobilizarem o leitor e merecerem comentários: um é seu valor intrínseco, os poemas curtos, diretos, secos (às vezes derramados, mas pieguice jamais). O humor (às vezes negro, por que não?) sempre presente, a crítica ácida ou suave, como quem, em vez de perfurar o oponente, prefere rir dele.

É o caso dos desenhos presentes em Grande circular, que trocam as críticas ao Congresso por “brincadeiras” que fazem dos prédios do Senado e da Câmara lápis, carrinho, gilete, Palácio do Planalto. Não é à toa que uma das acusações da Justiça aponte os desenhos como provas contra o denunciado. E também não é à toa que tais críticas perdurem e sejam tão atuais quase 30 anos depois…

A par de seu valor como poesia e crítica, no entanto, Restos vitais oferece outros sabores a serem curtidos. “O nome dá a pista: o que sobrou do que fui, mas que ainda me mantém vivo”, explica Nicolas Behr. “Não são restos mortais, portanto. São vitais. São indícios de presente vindos direto do passado, são histórias, testemunho de um tempo que muitos não viveram, mas que podem vivenciar por intermédio do poeta.”

Afinal, não tem sido, nos últimos milênios, esta a função dos poetas, pelo menos dos grandes e bons? Poesia que remete e traz de volta, que ensina sem que se perceba.



*
se é para bem de todos
e felicidade geral da nação
diga ao povo
que direitos, direitos
humanos à parte

*
se é para o bem de todos
e felicidade geral da nação
diga ao povo
que fique

*
se é para o bem de todos
e felicidade geral da nação
diga ao rei
que o povo fica

*
se é para o bem de todos
e felicidade geral da nação
diga ao povo
que a entrada é pelos fundos

*
quem teve a mão decepada
levante o dedo

*
Deus está morto
Marx está morto
eu estou morto
vou enterrar os três
depois de amanhã

*
ninguém me ama
ninguém me quer
ninguém me chama Nicolas Behr

*
o telefone toca
a vida
por um fio

*
não vou com tua cara
nem a pau
...
não sou oito
nem oitenta
sou oitenta e oito
...
hoje andei
feito um pedestre
...
meu nome de guerra?
gregório de mattos
...
meus caninos
tão doendo
pra cachorro

*
sou um poeta
sem eira nem beira
ninguém me chama
Manuel Bandeira

*
a poesia não morreu
ela tá apenas
enterrando a gente

*
você tem uma hora de prazo
pra escovar os dentes
pagar suas dívidas
comprar um carro zerinho
e dar um tiro na cabeça

*
matei a aula no recreio
estrangulei o professor na sala de espera
esquartejei meu colega de banheiro
esfolei o professor no intervalo
torturei o porteiro na saída
passei em todos os vestibulares da vida

*
na quinta-feira
da semana passada
esqueci minha boca
dentro do armário
naquele dia
não mordi ninguém

*
xingar um cara desse
de filho da puta dá cadeia?

*
entro na sala
sem pedir licença
sem por favor
sem muito obrigado
vou direto ao assunto
como vai?
tudo bem?
saio sem fechar a porta

*
enfim, era preciso sabe
quanto cimento será gasto
numa ponte por onde ninguém
passará de mãos dadas


MANCHETE DE 2001

OBJETOS VOADORES
NÃO IDENTIFICADOS
SOBREVOAM A CIDADE
(eram duas borboletas)


A VOLTA DO POETA

Depois de depor no DOPS
voltou pra casa angustiado
abraçou-se à máquina de escrever
e datilografou:
- Poesia,
aqui me tens de regresso...


BRAXÍLIA (RECOMPOSIÇÃO)

*
começa a demolição
quero pra mim
os anjos da catedral

*
a última coisa
que quero fazer
em brasília é morrer

*
estou salvo:
a poesia não é tudo

*
centro cultural
nicolas behr?
nem morto


PALAVRA FINAL

amai-vos uns aos outros
e o resto que se foda


Para ler outros poemas de Nicolas Behr acesse http://www.nicolasbehr.com.br/