segunda-feira, 1 de junho de 2015

No céu, com diamantes


Trajando sandálias chinesas, cabelo punk, carregando um diploma de mestrado em arte e um livro editado em Londres, Ana Cristina César chegou ao Brasil em plena década de 70, para marcar definitivamente a história da poesia contemporânea nacional. Ana C., como gostava de assinar, distinguiu-se por sua voz despudoradamente feminina e por ter criado uma obra poética nova, resultante de uma mistura de ficção e confissão.

Nascida no dia 2 de junho de 1952, no Rio de Janeiro, criou-se entre Niterói, Copacabana e os jardins do colégio Bennet. Aos sete anos, publicou seus primeiros poemas no jornal Tribuna da Imprensa. Em 1968, passou um ano em Londres e realizou muitas viagens pelo mundo. Voltou para o Brasil transformada e formou-se em Literatura na PUC-RJ, onde mais tarde deu aulas.

Para sobreviver, fez muitas traduções, escreveu para revistas e jornais alternativos – que seriam o berço dos melhores jornalistas e ilustradores de hoje – e lançou seus livros por editoras independentes. "O Beijo", um desses jornais alternativos, foi reconhecido em sua época como um dos mais interessantes veículos da contracultura carioca, da década de 70.

Em 1978, após finalizar um Mestrado de Comunicação na UERJ, foi mais vez para Londres, onde obteve, com distinção, o título de Master of Arts em teoria e prática literária. Ao retornar ao Brasil, fixou residência no Baixo Gávea e começou a trabalhar com jornalismo e televisão. Em novembro de 1982, pela primeira vez, ela publicou seus versos por uma grande editora: "A Teus Pés", editado pela Brasiliense.

O livro reunia seus escritos que já eram conhecidos através de jornais (como a Folha de São Paulo), revistas e livros de tiragem limitada. O lançamento de "A Teus Pés" foi saudado pela crítica, que começou a ver Ana C. como um dos mais promissores talentos poéticos da poesia marginal carioca da geração de 70, o que as pessoas que a conheciam já sabiam.


No texto seguinte, a poeta nos ensina sobre si mesma e sobre a sua arte: "Era noite e uma luva de angústia me afagava o pescoço. Composições escolares rodopiavam, todas as que eu lera e escrevera e ainda uma multidão herdada de mamãe. Era noite e uma luva de angústia... Era inverno e a mulher sozinha... Escureciam as esquinas e o vento uivando... Saí com júbilo escolar nas pernas, frases bem compostas de pornografia pura, meninas de saiote que zumbiam nas escadas íngremes. Galguei a ladeira com caretas, antecipando o frio e os sons eróticos povoando a sala esfumaçada".

Com todo esse sentimento, a poeta criou "Samba-canção", uma de suas mais belas poesias sobre o ser feminino contemporâneo: "Tantos poemas que perdi. Tantos que ouvi, de graça, pelo telefone - taí, eu fiz tudo pra você gostar, fui mulher vulgar, meia-bruxa, meia-fera, risinho modernista arranhando na garganta, malandra, bicha, bem viada, vândala, talvez maquiavélica, e um dia emburrei-me, vali-me de mesuras (era comércio, avara, embora um pouco burra, porque inteligente me punha logo rubra, ou ao contrário, cara pálida que desconhece o próprio cor-de-rosa, e tantas fiz, talvez querendo a glória, a outra cena à luz de spots, talvez apenas teu carinho, mas tantas, tantas fiz..."

Ana Cristina César demitiu o verso e a própria vida numa tarde de sábado, dia 29 de outubro de 1983. Tinha 31 anos quando se suicidou, se jogando pela janela de seu apartamento. Quarenta minutos antes de sua morte, Ana C. conversou pelo telefone com o poeta Armando Freitas Filho. O poeta, logo depois que recebeu a notícia da morte, soube que havia uma carta destinada a ele. Nela, havia brincadeiras, digressões sobre a poesia e a vida, histórias de namoros falidos ou mal começados, comentários ácidos sobre tudo e todos em uma só trama, que fez com que Armando Freitas Filho a definisse da seguinte maneira: "Ana Cristina foi uma ventania em câmara lenta que passou na minha vida".


Ana C. foi a própria encarnação da modernidade. Soube ser feminina sem ser feminista, sem estar ideologicamente presa a nada. Talvez por isso, tenha morrido cedo, fazendo sobre nossa terra uma passagem permanente. O lugar que ocupa como poeta é na linha do horizonte - virtual e veloz. Seu verso, que pertenceu à vertente cultivada da geração que apareceu em 70, é, hoje, a pedra fundamental de toda a poesia que se quer nova.

Depois de sua morte, Heloísa Buarque de Holanda e Armando Freitas Filho se encarregaram de editar a correspondência da poetisa. Nessa obra, mais do que um mero relato das experiências vividas pela artista, é possível reconhecermos o seu desejo de superar o circunstancial por meio do artifício literário. Intitulado "Correspondência Incompleta", é composto pelas cartas da jovem poeta carioca endereçadas às suas professoras Clara Alvim, Heloisa Buarque de Hollanda, Cecilia Londres e à amiga Ana Candida Perez, entre 1976 e 1980.

A maneira apaixonada como relevava a sua vida às amigas, rouba a cena nestas correspondências. É uma obra maravilhosa, onde é possível perceber a personalidade de uma das mais sensíveis escritoras da literatura contemporânea. Ana C. transformou a mulher em texto, o corpo feminino em prosa e a vida em arte. Em suas palavras: "A ponto de partir, já sei que nossos olhos sorriam para sempre na distância. Parece pouco? Chão de sal grosso, e ouro que se racha. A ponto de partir, já sei que nossos olhos sorriem na distância. Lentes escuríssimas sob os pilotis. "


Após sua morte, a reunião de seus escritos inéditos deu origem a três obras, organizadas por Armando Freitas Filho: “Inéditos e dispersos” (prosa e poesia), de 1985, “Escritos da Inglaterra” (ensaios e textos sobre a tradução e literatura), de 1988, e “Escritos no Rio” (artigos, textos acadêmicos e depoimentos), de 1993.

Mário Prata disse que “as pessoas não ficavam amigas de Ana. As pessoas simplesmente se apaixonavam por ela”. E Armando Freitas Filho: “Ana Cristina encarava a modernidade. Talvez por isso tenha morrido cedo - pura passagem permanente - muitas asas e um desdém pelo que poderia ser raiz. O lugar que ocupa é linha do horizonte - virtual e veloz.

Seu verso, que pertence à vertente cultivada da geração que apareceu em 70, é, hoje, pedra de toque para toda poesia que se quer nova; com seus motivos e matizes estilizados que se deixam acompanhar, ao fundo, por uma brusca e inusitada melodia que parece ter sido feita pela mistura de cristais, heavy metal e tafetá.

A obra é breve, um cinema essencial, e depressa. Morria de sede no meio de tanta seda. Nunca nos esquecemos de sua paixão acesa e seca. O que mais queima: a pedra de gelo ou o ferro em brasa? Vulcão de neve. Ela não foi - ela fica - como uma fera."




Protuberância

Este sorriso que muitos chamam de boca
É antes um chafariz, uma coisa louca
Sou amativa antes de tudo
Embora o mundo me condene
Devo falar em nariz (as pontas rimam por dentro)
Se nos determos amanhã
Pelo menos não haverá necessidades frugais nos espreitando
Quem me emprestar seu peito na madrugada
E me consolar, talvez tal vez me ensine um assobio
Não sei se me querem, escondo-me sem impasses
E repitamos a amadora sou
Armadora decerto atrás das portas
Não abro para ninguém, e se a pena é lépida, nada me detém
É sem dúvida inútil o chuvisco de meus olhos
O círculo se abre em circunferências concêntricas que se
Fecham sobre si mesmas
No ano 2001 terei (2001-1952=) 49 anos e serei uma rainha
Rainha de quem, quê, não importa
E se eu morrer antes disso
Não verei a lua mais de perto
Talvez me irrite pisar no impisável
E a morte deve ser muito mais gostosa
Recheada com marchemélou
Uma lâmpada queimada me contempla
Eu dentro do templo chuto o tempo
Um palavra me delineia
VORAZ
E em breve a sombra se dilui,
Se perde o anjo.

Flores do Mais

devagar escreva
uma primeira letra
escrava
nas imediações construídas
pelos furacões,
devagar meça
a primeira pássara
bisonha que
riscar
o pano de boca
aberto
sobre os vendavais,
devagar imponha
o pulso
que melhor
souber sangrar
sobre a faca
das marés;
devagar imprima
o primeiro
olhar
sobre o galope molhado
dos animais, devagar
peça mais
e mais e
mais

Casablanca

Te acalma, minha loucura!
Veste galochas nos teus cílios tontos e habitados!
Este som de serra de afiar facas
não chegará nem perto do teu canteiro de taquicardias...

Estas molas a gemer no quarto ao lado
Roberto Carlos a gemer nas curvas da Bahia
O cheiro inebriante dos cabelos na fila em frente no cinema...

As chaminés espumam pros meus olhos
As hélices do adeus despertam pros meus olhos
Os tamancos e os sinos me acordam depressa na
madrugada feita de binóculos de gávea
e chuveirinhos de bidê que escuto rígida nos lençóis de pano

Que deslize

Onde seus olhos estão
as lupas desistem.
O túnel corre, interminável
pouco negro sem quebra
de estações.
Os passageiros nada adivinham.
Deixam correr
Não ficam negros
Deslizam na borracha
carinho discreto
pelo cansaço
que apenas se recosta
contra a transparente
escuridão.

Fagulhas

Abri curiosa
o céu.
Assim, afastando de leve as cortinas.
Eu queria rir, chorar,
ou pelo menos sorrir
com a mesma leveza com que
os ares me beijavam.
Eu queria entrar,
coração ante coração,
inteiriça,
ou pelo menos mover-me um pouco,
com aquela parcimônia que caracterizava
as agitações me chamando.
Eu queria até mesmo
sabe ver,
e num movimento redondo
como as ondas
que me circundavam, invisíveis,
abraçar com as retinas
cada pedacinho de matéria viva.
Eu queria
(só)
perceber o invislumbrável
no levíssimo que sobrevoava.
Eu queria
apanhar uma braçada
do infinito em luz que a mim se misturava.
Eu queria
captar o impercebido
nos momentos mínimos do espaço
nu e cheio.
Eu queria
ao menos manter descerradas as cortinas
na impossibilidade de tangê-las.
Eu não sabia
que virar pelo avesso
era uma experiência mortal.




Tenho arrumado os livros.
Tiro de uma prateleira sem ordem e coloco em outra
com ordem. Ficam espaços vazios.
Hora em hora.
Não tenho te dito nada.
Ligo para os outros.
O que eu poderia dizer é perigoso: certeza (assim como
eu disse: daqui dez anos estarei de volta) de que nos
reencontramos, cedo ou tarde.
Mas não sei mais quando

Cedo ou tarde reencontro - o ponto
de partida.



Tu queres sono: despe-te dos ruídos, e
dos restos do dia, tira da tua boca
o punhal e o trânsito, sombras de
teus gritos, e roupas, choros, cordas e
também as faces que assomam sobre a
tua sonora forma de dar, e os outros corpos
que se deitam e se pisam, e as moscas
que sobrevoam o cadáver do teu pai, e a dor
(não ouças)
que se prepara para carpir tua vigília, e os
cantos que
esqueceram teus braços e tantos movimentos
que perdem teus silêncios, o os ventos altos
que não dormem, que te olham da janela
e em tua porta penetram como loucos
pois nada te abandona nem tu ao sono.


Soneto

Pergunto aqui se sou louca
Quem quer saberá dizer
Pergunto mais, se sou sã
E ainda mais, se sou eu

Que uso o viés pra amar
E finjo fingir que finjo
Adorar o fingimento
Fingindo que sou fingida

Pergunto aqui meus senhores
quem é a loura donzela
que se chama Ana Cristina

E que se diz ser alguém
É um fenômeno mor
Ou é um lapso sutil?



olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas



O homem público n.º 1


Tarde aprendi
bom mesmo
é dar a alma como lavada.
Não há razão
para conservar
este fiapo de noite velha.
Que significa isso?
Há uma fita
que vai sendo cortada
deixando uma sombra
no papel.
Discursos detonam.
Não sou eu que estou ali
de roupa escura
sorrindo ou fingindo
ouvir.
No entanto
também escrevi coisas assim,
para pessoas que nem sei mais
quem são,
de uma doçura
venenosa
de tão funda.

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